Friday, September 10, 2010

Pastor Jones v. Imam Rauf

Não sei o quanto a notícia repercutiu no mundo, mas aqui nos Estados Unidos o planejamento de uma demonstração de intolerância contra o Islã ganhou espaço central nos noticiários e na veia política pré-eleitoral. O pastor Terry Jones, de Gainesville, Florida, marcou para o dia 11 de Setembro uma reunião de fiéis anti-islâmicos para a queimada de livros do Alcorão. Conforme disse à âncora da CNN, Soledad O’Brien, “até mesmo muçulmanos moderados deveriam nos apoiar”, pois “é uma demonstração anti-extremismo” e não anti-Islã.

Às vésperas das eleições que podem ceifar o partido Democrata da maioria em ambas casas do Congresso conquistada pós-Bush, a polarização das duas ideologias extremas dos Estados Unidos atinge seu ápice. A presidência de Barack Obama, marcada pelo tórrido clima econômico que parece não querer melhorar e por mais fracassos do que sucessos democráticos – especialmente considerando pedidos de democratas progressistas – parece enredar-se cada vez mais em arame farpado. A controvérsia da construção de uma mesquita justamente onde o atentado do 11 de Setembro ocorreu acabou criando ainda mais pânico na direita fanática, que procura líderes em um momento típico de uma genuína Idade das Trevas do sul, oeste e sudeste estadunidenses.

A extrema direita religiosa do país não representa a maioria de seus habitantes tal como extremistas muçulmanos não representam a maioria em suas religiões. É importante lembrar que nos Estados Unidos há centenas de mesquitas construídas, algumas mais controversas do que outras, mas a liberdade de expressão é ainda massivamente respeitada, salvo em casos de indivíduos arruaceiros, assassinos e não menos extremistas do que seus criados inimigos. Portanto, queimar livros santos para muçulmanos foi considerado abominável até mesmo pela base republicana, e mesmo assim ninguém pôde ou pode vetar a reunião. O mesmo ocorre com a mesquita onde derrubaram as Torres Gêmeas, a liberdade de capital, no caso, do Imam responsável pela escolha do local é absoluta.


Comparar, entretanto, a construção de um templo religioso com a queimada de livros de uma outra religião seria a soberba estapafúrdia. A liberdade é comparável, mas os atos partem de pessoas com diferentes perspectivas e motivações além da fé, ou de sua intensidade, comum. Já havia uma mesquita integrada ao mesmo sítio onde o Imam pretende construir um melhor ponto referencial aos seus seguidores. Apesar do próprio Imam Rauf apresentar argumentos etnocêntricos para defender seu direito mesmo podendo politicamente utilizar-se de uma assimilação perfeita à cultura dos Estados Unidos e defender-se com o puro direito do livre investimento, liberdade de expressão e de adoração de qualquer deidade ou religião, os direitos em si existem e serão respeitado caso assim decidir o lider. Jones, no entanto, incita um conflito diretamente étnico, ausente de direitos maiores do que o “porque quis” típico de uma libertinagem ainda permitida, e mesmo tendo esse direito, a liberdade acima comparada, seu uso seria exclusivamente conflituoso.


Quem posicionou-se contra a construção da mesquita de Imam Rauf citou a potencial ofensa à memória de vítimas do maior atentado islâmico contra o Oeste de nossa história contemporânea. É compreensível que o desconhecimento generalizado de uma cultura de diversas etnias e segmentos religiosos realmente traga uma suspeita generalizada – ora chamada de preconceito – contra a prática da mesma religião à qual um grupo de terroristas clamou pertencer. Porém justificar o preconceito ao invés de aproveitar a oportunidade de estender as mãos a representantes desta dita religião é justamente o que mais agrava a opinião pública contra o Oeste e contra a democracia que neo-conservadores estadunidenses querem espalhar por todas as curvas e pontas do planeta. Filosofia, aliás, adotada pela nova administração supostamente liberal de Obama.

É impossível deixar de pensar em Samuel Huntington quando escreveu o famoso texto sobre “O Conflito das Civilizações”, um prisma neo-realista sobre conflitos étnicos e a inevitabilidade de guerras entre membros de distintas raças. Justamente pensando nessa inevitabilidade sob a luz do contraponto da aparente facilidade de se resolver esses conflitos é que entendo quão ignorantes podemos ser. Mesmo que a maioria se oponha veementemente à atitude de Imam Rauf ou do Pastor Terry Jones, a maior demonstração de nossa suposta democracia (considerando que ela falta em tantos outros setores da civilização ocidental) é justamente permitir a alimentação de combustível ao conflito. Um protesto em massa no Afeganistão já esclareceu que habitantes daquele país recebem apenas a notícia do evento de Jones, entitulado “Dia Internacional da Queimada do Corão”, e não o que a opinião pública doméstica considera. De modo similar muitos cidadãos estadunidenses ainda pensam que todos os muçulmanos simpatizam com Bin Laden, e jamais saberiam, mesmo se todos os muçulmanos assim simpatizassem, suas causas e motivos pela mesma tendência etnocêntrica.

Não seria impossível evitar conflitos entre civilizações e etnias diferentes. Tecnicamente não precisaria nem ser tão difícil. Mas é...

RF

6 comments:

Halem Souza said...

Roy, por aqui foi bastante noticiada essa proposta de queima de exemplares do Corão (mas parece que pastor acabou sendo "convencido" a desistir da absurda ideia).

Há um ponto do seu texto que destaquei:

"É compreensível que o desconhecimento generalizado de uma cultura de diversas etnias e segmentos religiosos realmente traga uma suspeita generalizada – ora chamada de preconceito – contra a prática da mesma religião à qual um grupo de terroristas clamou pertencer".

Então pergunto: qual seria o modo mais adequado para diminuir esse desconhecimento (ou esse preconceito) quando temos um grave problema relacionado aos meios de comunicação de massa e à divulgação de informações como você também observou na postagem?

Um abraço.

Roy Frenkiel said...

Grande Halem,
Sua pergunta é, simplesmente, a mais pertinente ao texto. A resposta parece quase tão fácil quanto seria fácil não ter ume perspectiva etnocêntrica sobre o assunto. No entanto, ambos representam dilemas complexos. Permita-me o parâmetro básico entre as duas questões:
1 – Por que não é tão fácil quanto o aparente conhecer o “outro” (Foucault) sem recorrer a um juízo etnocêntrico?
2 – Qual seria o métoco mais apropriado para conhecer o “outro” apesar do que transcorre nas notícias massivas?

Sobre o 1:
Recentemente um queridíssimo ser humano salientou um aspecto ora impensado sobre meu caráter mais íntimo: Posso, a qualquer momento, decidir voltar aos Estados Unidos (me disseram isso quando estive no Brasil) ou morar em Israel (ao resolver alguns problemas graves, como a deserção do exército israelense) caso assim decidir, e não tenho que viver as questões brasileiras. A realidade é que o buraco até para mim é mais embaixo. Posso mesmo decidir viver as questões brasileiras caso assim desejar, mas não preciso, muito mais do que por uma questão de mero conforto. A realidade é que tenho em mim uma certa “dição” (se má ou boa depende do momento e dos olhos de quem enxerga) de poder enxergar um mundo quase sempre sem etnia, cor, raça ou preferância sexual por ser, entre outras coisas, um bicho sem etnia, sem raça assumida (assumo ser judeu, o que não me torna necessariamente branco nem judeu enquanto for ateu), e sem orientação sexual normativamente assumidas. Assim, posso “ser” judeu quando bem me interessar, cidadão do mundo quando assim quiser e pan-sexual se assim me agradar. Comparável à minha condição só conheci uma pessoa, um japonês quase judeu, menos anarquista do que eu, que decidiu ser heremita até o momento que lhe couber.
Logo, para mim ,enxergar o mundo através de uma etnia, uma ideolgia ou uma mentalidade política fechadas me parece completamente incompleto como método de realização de capacidades. Portanto, julgar o “outro” sem considerar o fato de que há mais “outros” do que “uns” dependendo de onde escolhermos observar torna-se exercício nulo.

Roy Frenkiel said...

2- Do mesmo modo que minha identidade pouco permite a identificação com apenas um lado da moeda, acredito que todos possam chegar a esse nível. Sem a menor das pretenções, acredito em raízes, em vínculos e em amor à pátria. Acredito, acima de tudo, na capacidade humana de universalizar sentimentos. Se esse foi o maior pecado de Sigmund Freud, sua capacidade de admitir que a neurociência desprovaria seus conceitos neuróticos o isenta de punições. Ele sabia, afinal, que fatos e nossa percepção são duas coisas distintas. Contudo, como a maioria dos filósosofs éticos, ele também sabia que essa distorção pensamental era compartilhada pelos demais seres humanos. Assim, tenho plena consciência que minha experiência pode ser compartilhada até mesmo por pessoas que não viveram exatamente o que vivi.
Há de, primeiro, desvincular-se da “verdade absoluta” de nossas formações. Se temos fé, precisamos separar a fé da razão, mesmo que a fé proporcione a razão. Sei que muitos achariam esse o mais difícil dos passos, pois que levem em consideração Tomás Aquinas, que “aristotelizou” o cristianismo, ou “cristianizou” o “arestotelismo” justamente para tornar válida a fé no reino da razão. Se as pessoas entenderem que qualquer argumento deve ser baseado estritamente em uma razão universal (e não em conceitos pré-formados) as chances de uma ação etnocêntrica diminúem drasticamente.
Depois, há de se entender que as belezas de nossa educação, de nossa cultura e de nossas raízes não é exclusiva. Outra pessoa, com outra educação, cultura e raízes verá a mesma em seu próprio nicho (seja ele de direita, esquerda, muçulmano, judeu ou cristão).
Logo, pragmaticamente falando, nunca houve um período mais propício para que indivíduos saiam de suas cascas e conheçam outros indivíduos de outras culturas e de outros países. Pois, conheçam. Informem-se. Acabou a era da responsabilidade da corporação, da autoridade de veículos de informação ou de tolerância a ideais governamentais. Na América Latina (incluindo a central), o governo é sempre o papai do povo, e um papai malvado, como o deus de muitas religiões, um papai que dita a quem escreveu e não leu o pau que lhe comerá. Para a América de Tio Sam o governo é um bicho papão e todos nascemos órfãos. A moral da história é que esse amadurecimento rápido desejado pelos norte-americanos e a necessidade de procurar bondade em um papai malvado comprovam que pessoas maduras e conscientes procuram a informação e consómem a mídia como melhor devem e podem.
Portanto, tanto faz minha identidade ou o que penso sobre mim ou sobre o mundo. O que mais importa é a independência pensamental. Poder pensar sem depender de conceitos pré-formatados, de ideologias rijas e fé consolidada. Não é possível pensar e concluir assim à não ser que o preconceito, a ideologia e a fé assim ditem especificamente. Conhecer o outro em termos de ferramentas disponíveis hoje em dia é pão com açúcar. O problema é querer conhecer o “outro” (Foucault), se é que me entendes.
A finalizar, essa é apenas minha resposta, ou seja, não tenho nenhuma empírica sobre o tema, mas vale a pena estudá-la.
Abrax,
RF

Marcelo F. Carvalho said...

Belíssimo texto, Roy!
Reflexivo e bom escrito.

Marcello said...

Roy,
clap, clap, clap!,
é o meu contário.
Breve e sucinto assim, porque você já disse o que eu teria pra dizer.
E, sim, a repercussão por aqui foi grande.
E, sim, como eu esperava, foi muito barulho por nada (a se considerar o evento 'per si'), mas é de uma importância fundamental enquanto nos trás à reflexão o quanto potencialmente poderia (e poderá) redundar atitudes como essas.
Não foi agora e, esperamos, não será nunca...
Porque nós não vamos permitir.

Grande abraço.

Roy Frenkiel said...

Grato aos dois Marce(l)los. Nao encontro seu blog fixo, camarada Marcello, me ajude, hehe.

Muito bom contar com leitores que sempre trazem bons pontos a se refletir. Obrigado a todos voces!

abrax

RF