Wednesday, September 08, 2010

Desintimidade e Ano Novo Judaico

Noite de ano novo judaico, mais uma repartição temporal que me espera, e uma curta crônica existencialista para acompanhar o café. Aos judeus/judias, Shaná Tová. Aos demais, paz. Com vocês:

A Desintimidade

Frizara o olhar no canto da sala de onde a entrada prostava-se da porta ao corredor a vislumbrar o inexistente. A menina de cabelos cacheados, morena, brincava com uma bola de futebol de salão antiga, tijolo. Como fosse menino dava dribles na mesa de jantar, nas cadeiras e nos vasos que enfeitavam sua casa. Ria-se sozinha ou de si. Ele consolava-se com a ideia de que o mundo desmilinguira. Via o coerente no sorriso da imaginada, na consciência sórdida de que ela não existia, na necessidade e nos exercícios mentais que ele precisara exercer para fazê-la existir.

Eram duas horas da manhã, mas não conseguia dormir. Sofria de um mal que todos sofremos vez ou outra em nossas vidas, uma espécie de gripe moral. Nas memórias escondia seus brinquedos e apetrechos santos, assim construindo mundos novos onde se refugiava quando a solidão batia. Com a pancada despertava e não conseguia voltar a dormir. Coisas de nefelibatas. Sabia que se o telefone não tocasse seria circunstancialmente apenas natural. O sobrenatural se materializava enquanto o tempo sobrava-lhe, enquanto sobrava-lhe somente tempo.

Esvaziara mais cedo os retratos de sua casa. Não queria discriminar ninguém no processo de luto. Seguir adiante é sempre uma tarefa nova, um “passo-de-fé”, especialmente em fases similares à dele. A infante seguia ali, agora montando um quebra-cabeças de mil peças. Ele a media de cabo a rabo, das pontas dos dedos aos cabelos arrepiados da franja. Tinha os olhos da mãe, o nariz do pai e as feições dos dois avôs. Era particularmente bela. Talvez o maior problema na montagem de sua existência foi o fato de nunca ter sido muito organizada. Era isso: Saiu mal planejada. Um problema que qualquer um teria enormes dificuldades de resolver, mas que não lhe servia de estorvo, apenas o aliviava.


Observando os movimentos da menina atinha-se ao bem querer que ainda lhe sobrava. O bem do amor é também o mal do amor. A poesia era nula, a música muda e os olhos cegos de vandavais íntimos. Não fosse a ideia da criança teria enlouquecido. Sabia que podia conversar com ela apenas por não existir. A ideia do desvínculo é das mais crueis existentes, aliás. Quem existe deixa de existir. Os conflitos são enormes, mesmo que antes e algum tempo depois não sejam ou deixem de ser conflitos.


Assim faz-se de conta a intimidade, caçoa-se de nós quando desintimida. Assim se perde e pouco ou nada há a se fazer para que não se perca. A metamorfose que nem sempre ocorre e, portanto é santa quando ocorre, também se prostitui à marca dos tempos. Somos seres de intimidades e desintimidades. Contudo, morre apenas quem quer morrer. Faz-se da ilusão, da inexistência dessa pessoa inventada, a calmaria de sua existência em outros corpos.


Aos suspiros transpirava o ar puro e gélido que adentrara sua pele e oriçara seu olfato da janela aberta. Ao parecer teria mais um verão cheirando a inverno. A menina certamente adormecera. O calendário dava sinais de meses distintos, talvez devesse retornar os retratos aos seus devidos postos. Amanhecia praticamente, era um dia novo e pensava em se desfazer dos fantasmas. Não queria criar novos.


Assim é a desintimidade, ganhar novos espaços e perder os antigos, conquistar novos estados e abdicar da soberania de outros, pesar os valores e entender os desvalores. Assim nos desintimida. Pede tempo para pensar e desfazer suas malas mesmo não tendo-lhe pedido que as desfaça, mas dá-lhe tempo a refazê-las em outro lugar. Não que se surpreendesse por ser esta sua natureza. Afinal assim é o mundo e assim sempre foi. Dá-se boa noite mesmo querendo dizer bom dia. O mundo é um jogo de intimidades e desintimidades e nós somos atrapalhados jogadores. Alguns ganham mais do que outros, mas a maioria termina empatada.


Deixou os retratos guardados por preferência conscisente. Não queria acordar a princesa. Deu-lhe boa noite e se recolheu.


RF

No comments: