Friday, February 26, 2010

Purim – Mais uma história contemporânea

Para os judeus, o festival de Purim é um dos mais importantes do ano. Certamente é o mais alegre, e nele, a recomendação é embebedar-se até o não reconhecimento entre as forças do bem e do mal, ou em palavras mais simples, a confusão embriagada entre Mordechai, o Judeu, e Haman, o Hagaguita.

À época de Rei Xerxes da Pérsia, com a expansão territorial da grande civilização persa foram incluídos no domínio diversos e variados povos. Entre eles os Hagaguitas e os judeus, que viviam lado a lado na capital de Susa, em grande parte convivendo em harmonia. Essa era justamente a época principal não só da convivência pacífica, mas da superação de comunidades com costumes e culturas ora adversas em um mesmo território geo-político.

No psicológico judaico, a existência do Estado de Israel é essencial à garantia de sobrevivência entre os povos não-judeus. Purim, de certo modo, reforça essa mentalidade na psique tradicional do povo do livro. Com tanta perseguição histórica, não é de se estranhar, convenhamos, que grande parte das datas festivas comemorem a obtenção da liberdade, a redenção ou a possibilitação da mera continuidade de um povo. A festa das luzes, Hanuká, comemora a vitória do exército Macabeu contra as tropas de Antiochus; a festa de Pessach, próxima à Páscoa Cristã, comemora a abolição da escravidão judaica no Egito e, enfim, Sukot comemora a fuga dos judeus do Egito em cabanas provisórias.

Purim, no entanto, tem um significado especial para a tradição judaica. Não se trata da defesa do próprio território independente e soberano, nem da fuga dos primeiros integrantes da primeira religião monoteísta do jugo de seus primeiros inimigos étnicos, mas sim da sobrevivência “miraculosa” conquistada pelos judeus apesar da esmagadora minoria em terras estrangeiras. Haman o Hagaguita (outro povo que convivia em minoria entre os persas), conselheiro de Rei Xérxes, irritou-se com as diferenças culturais entre os judeus, que não faziam negócio nem casavam com os demais, enfezou-se com a falta de humildade de Mordechai, que não se prostrava a ninguém que não fosse seu deus, e animou-se com a possibilidade de erguer-se entre a monarquia endeusada da Pérsia antiga. Logo, convenceu Xérxes a permitir a aniquilação do povo judeu em todo seu domínio com um decreto que instigava a população a fazer com judeus e suas propriedades o que bem entendessem, e proibindo que as forças judaicas intervissem no assunto.

Para quem não se recorda dos textos passados, foi Esther, a bela Rainha escolhida por Xérxes em uma espécie de concurso de debutantes que convenceu seu rei em artimanhas a não executar o decreto real. Mesmo para os judeus em suas múltiplas interpretações das santas escrituras judaicas, Esther era persa. Originalmente, trata-se da “prima” de Mordechai ou de sua “sobrinha” segundo distintas interpretações da palavra, mas muitos concordam que prima ou sobrinha, ela era também a esposa de Mordechai, e era cem por cento persa. Sua nacionalidade é importante para entender como convenceu Xérxes a salvar seu povo, chamando-o a um jantar privado, inicialmente, logo a um jantar a três entre a própria, o rei e seu conselheiro Haman, e logo através de místicos e enrolados pedidos indiretos, até a sedução final e sua manha feminina vitoriosa na decisão do rei não de anular seu decreto, mas de permitir que as forças judaicas defendessem a população de eventuais agressores, e de executar Haman e seus dez filhos.

No texto passado transcrevi a lógica de William O. Beeman sobre o sistema comunicativo iraniano. Pois, é nesse mesmo sistema, originalmente persa, que Esther obteve o sucesso necessário: discrição, falsa-humildade e indiretas excessivamente polidas.

Ironicamente, a antiga Pérsia, o Irã, é um dos principais inimigos de Israel atualmente. Na mesma ironia, é um dos poucos países que não expulsou judeus após a vitória Sionista na guerra de 1947-48, quando da criação de seu estado. Em troca da abnegação da legitimidade de Israel, líderes iranianos concordaram em permitir que os complascentes permanecessem em sua casas, com suas posses, e que convivessem pacificamente com o resto de sua população. O relacionamento vigente de amor e ódio entre iranianos (persas majoritariamente shiitas) e os judeus é ainda dos mais contundentes e intensos até hoje.

É difícil, no entanto e ao menos para mim, definir se é certa ou totalmente equivocada a perpetuação do sentimento de defesa-própria bélica na psique judaica. A maioria dos judeus no mundo apoiam a existência de Israel, e não teriam motivos para não apoiá-la. É óbvio (também ao menos para mim) que esse sentimento nacionalista exista em um contexto muito mais profundo do existente na América, por exemplo, pelos dois extremos de seu hemisfério. Trata-se de um verdadeiro “Millet”, ou “nação-religiosa”, o que no caso se expande ao significado de “nação-etnia”, algo muito mais intrínseco do que o nacionalismo sentido por um estado “orgânico”.

Afeta a existência e a legitimação do próprio povo, que caso expulso dos territórios conquistados com o esforço do Yishuv (organização judaica que foi o principal agente da estruturação do povo judeu na Palestina) e suas forças armadas (Haganá e, fatalmente, o Irgun Tzvaí Leumi, que tornou-se o exército chamado Força de Defesa Israelense), ficaria à mercê de uma massa majoritária que não os quer por lá, ou à mercê da comunidade internacional que já virou as costas para ambos os povos da região em mais de uma ocasião calabrosa (como a rejeição do navio de refugiados da Alemanha Nazista por parte da Grã-Bretanha, ou a inaceitação dos Estados Unidos de imigrantes judeus-europeus pós Segunda Guerra Mundial).

Se até o ano passado Purim era meu festival favorito, hoje entendo que os mesmos problemas que forçaram o extermínio de povos no passado ainda persistem. E, ao contrário do que pinta o Rolo de Esther (que não tem o nome de deus escrito em uma única passagem, elás), não há um lado certo, nem um errado. Nesse mundo, mesmo que nem sempre conscientes do fato, estamos todos embrigados ao ponto do não-reconhecimento entre as dicomotômicas forças do bem e do mal. Somos todos judeus entre persas, persas entre judeus e Hagaguitas magoados. Mesmo assim, melhor festejar do que chorar.

RF

2 comments:

Jens said...

Oi Roy.
Mais uma vez comprovada a força da mulher. O que seríamos nós sem elas?
A propósito, estréia na semana que vem uma minissérie produzida pela Record: A história de Esther, em dez capítulos. Creio que vai ser interessante acompanhar a visão tupiniquim de um episídio histórico tão importante para o povo judeu. Não sei se vai dar pra ver aí.
No mais, divirta-se no Purim. Nem só de pão, scotch e elucubrações intelectuais vive o homem.

Abraço.

Barbara said...

Tô dentro mesmo sendo de fora.
Substancial , isso de estarmos todos magoados.