Foi exata e auspiciosa a pergunta que me ocorreu. Lógica, alguns dizem. Para mim, pois, a foi.
“E quem é minha mãe?”
Vigésima-Quinta Parte
“A mãe Úrsula...” Respondeu minha irmã sem pensar duas vezes, n’um pulo. Suspeitei profundamente.
“Não, Janaína... Quem me pariu?” Disse agitado, engolindo lágrimas e soluçando-as.
“Assim se diz, Caçá? Assim se diz? Pariu? Feito animal?” Dissimulou.
“Assim se diz, ou assado, tanto faz! Você entendeu.” Fui brusco, mas seco. Janaína levou a mão aos olhos.
“Entendi... Caçá, sua mãe nunca foi esposa de Jurandir. Se é que você suspeita de suas mulheres, ou heroínas, ou vivendo a eterna negação. Jurandir já foi boêmio.” E eu a ouvia, ainda atento, intrigado, “Já foi boêmio, já foi mais moço, mas a vida nos dá sustos, a vida nos traz dores... Caçá, você sabe o que acontece. Você sabe de onde vêm os nossos demônios. Na cidade agora reina quase uma anarquia, quase uma ditadura. As coisas como estavam, mal estavam, eu concordo, mas os seus demônios você não soube criar, nutrir, educar... Você os usou, como Jurandir. Você sabe de onde eles vêm, não sabe?”
“Da mentira!” Interrompi enraivecido.
“Também... Mas não falo da mentira. Falo do silêncio, não o que diz cale-se, o violento, mas o paulatino silêncio, o querer acreditar e não querer mais ouvir a hipótese remota de que o que acreditamos não nos valha nada. Os demônios de Jurandir vieram de sua crença na onipotência, e tudo pôde. Seu irmão pôde mais. Teve mais. Esse sim, possui demônios inomináveis. Mas você, Caçá, é como seu pai, e como eu. Minha conscência e sua inconsciência. No meu silêncio você cultivou o seu, e ambos ficamos calados, deixamos levar. O que Jurandir faz, faz porque amou demais, ao seu irmão, às suas mulheres, às suas amantes...”
No sufoco... Peço de novo que me diga o leitor querido e a leitora simpática se já não se pressentia desde o início desta trama o que veio? Mas eu, só eu, diria Noel Rosa, é que não sabia. Ela dizia tudo o que eu não queria ouvir. Não... Aquilo nunca fez sentido. Sua consciência e a inconsciência de Jurandir, esta pintado nas palavras daquela. A compreender a prenda do vilão e os seus fazeres, precisaria abster-me do ímpeto que ainda me corrompe.
“Teve amantes,” ela seguia, “muitas amantes, e suas quengas o amavam. Jurandir cresceu, Caçá, na amargura, na má sorte, mas com todo o dinheiro do mundo. Seu pai exigia-lhe uma postura imaculada, mas gozava desse mesmo vício à estapafúrdia e fazia-lhe o inferno no mais leviano cálculo desviado. Ensinou aos gêmeos que eram de raça superior aos demais. Ensinou que a Terra foi feita para o seu uso. Ensinou que era feio caçoar do carro dos outros, da roupa dos outros, das coisas dos outros, enquanto delas se cagava dando belo exemplo. Pior... Chamava os empregados e os punia com multas, pedia serviços frívolos na frente dos filhos queridos, a fins de que aprendessem a destratar a humanidade que os cercava. Este, por seus motivos, por pais como ele, seu avô, pelos seus tataravós que em paz descansem, porque a mente, Caçá, a mente é a maior prisão de qualquer pessoa. A maior doença hereditária, como o maldito silêncio que eu te passei, meu filho, minha cria, fruto de meu amor infantil por Jurandir, da curiosidade à impossibilidade, de conquistar alguém que eu sabia ser o tal, em uma época que eu não poderia diferenciar tal de qual. Sim, Caçá... Eu o amei, e ainda güardo um quê de amor, apesar de todos os pesares...”
“Continuas amando...” Respondia eu, engasgado não nas palavras, não em articulações sonoras, mas no fixar empedernido de meus olhos. “Janaína, isso não faz o menor sentido, será que você não conseque perceber? Quero dizer, será que você enxerga a gravidade de tudo o que você me conta? Primeiro, uma estaca no meu peito dizendo que sou adotado... Sobrevivo apenas para saber que Jurandir é meu pai e você... Você! Você é minha mãe? E agora diz que o porco, o canalha, o puto do Jurandir é boa gente em corpo de diabo? Por favor, Janaína... Diz que está me sacaneando, que assim passamos a borracha nessa conversa e ficamos todos como estamos.”
“Não, Caçá. Passaram os tempos de passar borracha em papel. O sangue empapou o papel. Agora é hora de assumir uma postura de gente e honrar o contrato que você assinou com Jurandir. Ele não pode te tocar e já sabe disso. Não sabia antes. Deu por sorte que nada lhe fez, e ainda me pareceu culpado pela morte de João dos Rosários. Por favor, Caçá. Dou o tempo que você precisar desde o instante em que passar por aquela porta, por aquele porteira, pelos barris, pelas vinhaças de uma casa que já foi de um rico, e agora pertence a um miserável hermita por escolha.”
Monday, August 06, 2007
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1 comment:
A tragédia longamente anunciada se concretiza: o maior inimigo do filho é o pai. Tem algo de bíblico aí - e também de Freud, haja visto o amor renitente de Janaína pelo seu algoz. Quero ver como vai acabar.
Um abraço.
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