A tradição judaica predispõe famílias a aguardarem alguns dias após o nascimento antes de nomearem seus filhos e filhas. O ato de nomear em si ganha conotações centrais nas três religiões monoteístas. Dar um nome não é apenas uma facilitação da comunicação entre seres humanos e o mundo, mas uma forma de legitimação da existência daquilo que nos cerceia. Enfim, entregar a principal cédula de identidade de nossa prole torna-se mais do que afeto e inclusão: É a maneira materialista de aprovar nossa própria existência transfigurada à pele próxima.
Quando lhe disse, Micaella, que o mundo estava ao avesso, não quis dizer que não tenha sido sempre assim. Muito pelo contrário, sempre esteve ao avesso, ao absurdo remetido, segundo filosofias milenares ou contemporâneas, segundo a percepção coletiva da humanidade. Mas o que nossos tempos, especialmente os seus, tem de novidade entre os retornos eternos, é a disponibilidade de ambiguidades tão vasta que se estende ao infinito em veias de comunicação ainda arcaicas, se somente pensarmos nas possibilidades. Até podemos – e devemos – criar mais utensílios tecnológicos a facilitar nossas vidinhas, mas a abundância de significados é o que às vezes e cada vez mais nos priva da consciência, outrora tão exclusiva, de nossa identidade.
É isso que lhe quis dizer, Micaella, quando me pediram o testemunho desajeitado, ali entre amigos, em uma foto extensa e representativa desses mesmos tempos dos quais lhe falo: O universo que lhe recebe tem mais ambiguidades e identidades dispersas do que nunca teve.
Para algumas pessoas, quiçá a maioria, essa eternidade de possibilidades quantitativas e qualitativas incomoda mais do que a limitação antes imposta pela sociedade. No passado, na maioria das nações traçadas à pré-história da civilização todos tínhamos mais ou menos certeza de quem éramos dentro de nossas tribos. As religiões também ofereciam a grande vantagem do pertencimento a algo maior do que nós, enquanto vagamos meio sozinhos pelas ostes do planeta. Se não a religião, o nacionalismo, e se não o nacionalismo, um time de futebol, mas seja qual for o nome da tribo, sejam Yankees ou Froggies ou Corinthianos ou Palmeirenses ou Judeus ou Muçulmanos, todos sempre tivemos as escolhas limitadas pela nacionalidade ou religião ou cor de nossas peles, ou bairros onde moramos ou as passadas escolhas de nossos pais.
Lentamente nossas consciências começaram a captar mais identidades, mais possibilidades, até que o relmo das contradições se alargou ao não mais alcançá-lo. Pois é, Micaella, ainda assim conseguimos criar estigmas com outros nomes, pré-fabricá-los na nossa imaginação. Ainda, é claro, procuramos desesperadamente pela identidade limitada que nos cabe, e para melhor compreender o mundo à nossa volta, nomeamos de acordo com nossa própria percepção. Nem que seja pelo teor folclórico, o rito judaico me parece importante nesse sentido.
Quando seus pais, minha irmã caçula e meu amigo e cunhado lhe deram o nome pelo qual todos a chamam, não foi meramente para facilitar a comunicação entre vocês e nós todos, nem também apenas para legitimar sua existência, mas mais do que isso, dar-lhe a independência e a escolha própria de fazer de seu nome e suas letras o que bem entender. Portanto a escolha é paulatina, e o anúncio da mesma é ainda mais cuidadoso.
Você mesma já nasce em mistura pós-moderna, de mãe judia e pai cristão, ambos destacados dos universos religiosos, ambos brasileiros, um pouco israelenses, um pouco mediterrâneos, imigrantes em terras estrangeiras, latinos ou hispanos, europeus, quem explica? A única camiseta que lhe empurraram é a do Timão (por justa causa?) e ainda assim, veja só, a escolha é sua quando puder vesti-la sozinha.
Não tenha medo dessa ambiguidade, e não tenha medo de inventar sua própria identidade. Tenha coragem de combater os estigmas que colam ao seu nome com a saliva dos cuspes de suas próprias maldições os mal-intencionados, mas acima de tudo, tenha coragem de enxergar sua identidade estampada aos olhos daqueles que a amam, e serão, como já são, muitos. Entre intermináveis possibilidades, chegou em tempos perfeitos para escolher quem será como pessoa, como mulher, como judia ou o que mais quiser ser. Tem, justamente hoje, mais alternativas até do que as que teve seu tio.
Por isso não se assuste, Micaella, se minhas palavras tiram o chão dos muitos que ainda se apegam, consciente e permissivamente, aos nomes que lhes deram antes de nascerem. Há muitos chãos a pisar nesse mundo, e com seus pés pequenos o alcance é máximo. Use seu nome, Micaella, para costurar seu significado nas abas do planeta. Aproveite ao máximo também, pequena. Seja orgulhosa e compartilhe o orgulho. Em seu nome, Micaella. Em seu nome, a pequena grande será.
RF
PS 1: Micaella: Etimologia (do Hebraico) = Quem é (Mi) Ca (como) El (Deus) la ou “Quem é como Deus?”
PS 2 : O uniforme do Timão foi presente da tia Lilica
Thursday, February 11, 2010
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2 comments:
Roy
É tão tocante a delicadeza e a doçura com que vc escreve, ainda mais sabendo que esta pequena é tão linda e tão doce como o tio.
beijos
Micaella, cidadã do mundo: um universo de maravilhas te aguarda. Enjoy!
Um abraço, Roy (ops, rimou).
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