São tantas as opressões selvagens da humanidade sonâmbula, que faltam dias e épocas do ano para relembrar cada uma de suas faces. Mais difícil ainda é relembrar as faces dessas pessoas, cada uma de suas dores, homenagear todas as fontes de todas as vidas perdidas. A dificuldade parte do princípio da impossibilidade de bem tratar todas as vidas ganhas anualmente. Parte do destrato que tantos recebem antes mesmo de nascerem.
É difícil ver o fim do ano com bons olhos quando no dia 27 de Dezembro, Quinta-Feira, é assassinada Benazir Bhutto, aspirante à liderança do Paquistão. Assim se sela mais um ano que condensa a mesma velha realidade perturbadora de sempre. A diferença, talvez, é que parecemos caminhar de braços dados a um individualismo egoísta em alguns pontos do planeta, enquanto em outros há pessoas que, não repentinamente, fazem parte de um processo cíclico revolucionário. Verdadeiro e honesto talvez até pela simples falta de comodidade e segurança que temos tantos de nós, a segurança até irônica de não vivermos a desesperante corrupção de uma guerra. Benazir, por exemplo, despediu-se dos americanos pela CNN há pouco, e prometeu lutar pela democracia que seus seguidores pedem, uma democracia que tantos países asiátios e médio-orientais desejam como remédio à tirania de seus líderes obtusos.
À memória de Benazir agrega-se a memória do grande mestre de xadrez Garry Kasparov, que também despediu-se do público do programa de Bill Maher, na HBO, antes de rumar à Rússia à continuação de sua campanha contra o atual “potencial czar” Vladimir Putin. Pouco tempo depois, viu-se preso por motivos simbólicos. É considerado quase um terrorista, enquanto usa de sua posição conhecida para promover a liberdade de expressão que diz ver se perdendo de seu país, ou vice versa.
À memória de Kasparov agrega-se a batalha guiada pelos monges de Myanmar. Mais de 10,000 monges lideraram uma população cansada de um regime totalitário que assola a região há décadas às ruas e aos protestos intensos, que culminaram em mais uma resolução governamental de drásticas consequências, onde novamente inocentes perderam a vida e a voz nas praças e monastérios de Myanmar.
Os mesmos protestos ressurgiram em 2007 quando imigrantes ilegais nos EUA resolveram se arriscar em quantidades assombrosas considerando o medo da deportação, e protestaram por uma reforma imigratória justa, que reflita suas contribuições respectivas ao país que os rejeita. Em Los Angeles, inclusive, a atitude da polícia não foi muito diferente da atitude dos militares asiáticos, russos ou paquistãos. Nessa ocasião, muitos foram feridos por motivo nenhum. O único motivo é o agito, os gritos de liberdade que um povo decide emitir arriscando a estadia pela vida dos amigos, parentes ou futuras gerações. A perturbação da velha calmaria de todos os tempos.
Em 2007 vimos o povo saindo às ruas contra a corrupção brasileira. Pena que não foi o povo todo. Em retrospectiva, a efetividade desse inconformismo não amontoou em nada. Se o Brasil realmente cresce ou não, não sei. Não sou economista, e não vivo no Brasil há três anos para testemunhar as decadências localizadas. Sei que se a saúde, a educação e a corrupção dos poderes não melhorarem, quaisquer cinco por cento de crescimento anual não compensam o que realmente falta. Quem no Brasil se levantará contra a opressão da desigualdade?
2007 vái-se como começou. O ano mais sangrento no Iraque. Um ano de intensas batalhas, a mais recente envolvendo a Turquia. O presidente Bush já assinou o orçamento militar que garante a guerra abastecida até o fim do ano que entra. As eleições não prometem paz. Em Israel, o Oriente Médio ainda não se vê maior. No Líbano, o Hamas e o Fatah conseguem se desentender mesmo com um forte inimigo comum. Na Índia, tragédias trás tragédias aniquilam uma população que cresce proporcionalmente mais do que a chinesa, e não tende a parar de crescer.
Sobre a Venezuela e a Cuba nem sei o que dizer. Sobre a liberação dos sequestrados das FARCs colombianas, apenas posso desejar um bom retiro. E é claro, entre uniões e desuniões abaixo da camada de ozônio de nossa Terra, há tantas e inúmeras, não cabendo em tão singela retrospectiva.
O que também há, permitam-me salientar, é a probabilidade de que rumamos em direção a novas eras, como sempre. Como nunca, temos a globalização e a Internet. Como nunca, teremos a oportunidade de usar a ciência a favor do ser humano. Como nunca, estamos em uma fase rica de interesses e curiosidades de nosso próprio conhecimento, o conhecimento de nós mesmos. Conhecimento de nossas multiplicações e variações. Ainda tão amadores na arte de construir, mas peritos nas artes sentimentais. Às vezes perdidos entre o betume e o neon.
Em homenagem a Benazir Bhutto, cuja morte senti por tê-la acompanhado recentemente, por torcer a ver nela e em ramificações similares a esperança de um novo milênio de conquistas sociais, escrevo uma retrospectiva que relembra as opressões, mas não deixa de ressalvar a batalha humana em prol de uma melhor humanidade. Se a intensidade continuar a aumentar, mesmo que haja ainda mais perdas do que vitórias, nós poderemos vencer. Basta mesmo prestar atenção em um mundo que se recria diariamente. Basta perceber que das trevas ressurgimos fortalecidos, e que não somos sozinhos, porque sozinhos não somos nem nada.
Assim, esperamos um 2008 próspero. Que aprendamos a deixar que Bhutto descanse em paz, porque de nossa parte, temos ainda muito a fazer.
RF
Thursday, December 27, 2007
O ano em que Bhutto morreu
Essas Palavras Vos Trazem
Benazir Bhutto,
Cuba,
EUA,
FARC,
Myanmar,
Roy Frenkiel,
Venezuela
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1 comment:
Muito bom texto, pertinente e sagaz, rapaz! Eu senti muito a morte de Benazir também, era uma dolorosa morte anunciada! Quanta ignorância! Sobre o Brasil... eu vivo aqui desde que apareci no mundo, e eu não sinto o tal crescimento tão divulgado, acho que viver aqui está na mesma ou pior (digo isso para pessoas simples como eu, claro.) Eu, por motivos pessoais, me preocupo bastante com a educação...Quem estudou História e não sonhou nunca em fazer "a sua parte"? Acho que ninguém! (afinal História não é lá um curso promi$$or, não é mesmo?rs)
Uma das melhores experiências que eu tive na vida foi quando eu trabalhei na alfabetização dos funcionários terceirizados da USP! Quanta coisa aprendi com aquilo, era o conflito cultural (os melhores colocados na educação do Brasil e ao seu redor, trabalhando para eles, os desprovidos de educação básica! Esse é o Brasil, infelizmente... e não é de hoje! Na época da colônia, no século XVIII as minas de ouro da atual região de Minas Gerais primava pela opulência, mas quem sustentava essa riqueza toda era o trabalho dos miseráveis que lá viviam também...isso sempre aconteceu aqui, como na década de 1980, enquanto a cidade de São Paulo gabava-se de estar cada vez mais rica e poderosa, multiplicavam-se os mendincantes, flanelinhas, nas ruas da Selva de pedra... e muitos outros exemplos podia dar, mas agora já chega, afinal esse blog não é o meu rsrsrs
Abraço
Camila
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