Tuesday, July 03, 2007

O Segredo de Minha Irmã

E chegaram. Gonzalo com seu bastão, homens e mulheres sem sentido, controlados pela sutileza cerebral de meu companheiro, mas todos às beiras de ataques de nervos. Corri em direção ao tumúltuo, e recebi as boas vindas do povo desajeitado, os feitos marginais de Santa Maria. Mal tive tempo de explicar a que vinha. Ouvia o murmúrio, “é verdade que ele morreu?” “Quem morreu?” “João dos Rosários.” “Quem matou?” “Foi Jurandir.” “Matou quem não morreu, era ele ou o outro!” “Morreu foi ele, agora pegamos o outro.” “Morreu quem?”

Décima-Nona Parte

O que precisa ser mudado quando o rumo de nossas vidas parece ditado, quando parecemos perder o controle, ou perceber que o controle nunca foi nosso? Em uma cidade de poucas centenas de habitantes, uma dúzia malparida vem e agarra o que quer na hora que quer de quem quiser. Essa era nossa vida? Ou éramos apenas lavradores, peixeiros, açougueiros, padeiros, jornaleiros, educados, nem todos, a ler e a escrever, vacinados contra dois ou quatro agouros, mas felizes pelo cotidiano bucólico, pleno em imediatismo e saudosismo ambíguos? Os marginais, pelo quê lutávam?

Janaína me ressurgiu acompanhada de Olavo um certo dia, e disse:

“É esse aí, ó...” Apontando-me o indicador franzino.

Fui saber o que Olavo queria de mim quando tirou de sua mochila um livro branco, xerocado, uma cartilha. Nela, jaziam escritas palavras inteligentes. Humanitarismo. Socialismo. Democracia. Anarquia. Política e Sociedade. Maquiavélico. Máquina. Economia. Porcentagens. Nomes e mais nomes, e termos e mais termos. Todos faziam sentido quando Olavo os explicava. Mas, o forjado mentor nunca se apresentou, pessoalmente. Melhor explicando, nunca deu de si uma descrição completa, nunca contou de onde vinha, o que realmente queria. Apenas se deu a sentar, quando vinha, pelos tempos que veio, e ensinar o que as cartilhas falavam. Sem rumo específico. Eu mesmo, educado até o terceiro ano do primário, antes de encontrá-lo, semi-analfabeto, entendia que aquele tratado não era filosofal e, caso fosse educacional, assemelháva-se mais a atirar uma criança ao lago para que aprendesse a nadar por desespero. Esse foi Olavo para mim. Um rapaz alto, atraente, moreno, cabelos cacheados, olhos escuros, sorriso profundo, feições empáticas em um todo. Mas, além das lições que me dava e os cochichos inaudíveis que mantinha com Janaína, nada mais soube a seu respeito.

Eu, cresci. Tudo o que vi, tudo o que passei e fiz passar, incluindo a morte de João que jamais meter-se-ia com Jurandir não fosse por minha causa, serviu-me para chegar aos vinte e poucos sem entender quem sou, e sentir-me confuso quanto às minhas próprias origens. O que Olavo me ensinou apenas me fez perceber que havia possibilidades. Talvez, nessa exacerbação do conhecimento das alternativas, mesmo ainda estando na opção menos favorecida, quis que todos conhecessem a possibilidade das alternativas. Um choque, indubitavelmente, pensamental. Juntando-se essa sede lastimável pela mudança alheia ao ataque feito contra minha mãe, o que quis com Gonzalo, Miguel, Boiól, o sangue de Boiól, Agnaldo, Vicentinho, Paulão e o falecido João dos Rosários e dos 7 Mortos (usei o número como usam os economistas), o que acabei a querer com os outros tantos criados marginais às márgens do córrego de Santa Maria, fora provar que éramos mais do que éramos e que não nos poderiam pisar. Inconscientemente, o cenário às portas da mansão de Jurandir findou em bom negócio.

3 comments:

Moita said...

Continua escrevendo bem.
Espero que quando o seu livro for publicado, avise-me.

Abraço fraterno

Esther said...

Que pena que acabou. Acabou?

Jens said...

Acabou? Difícil: a luta dos deserdados da terra não acaba nunca.
(Mas que eu queria capar o Jurandir, eu queria!)