Saturday, May 19, 2007

O Segredo de Minha Irmã


Décima Segunda Parte

E eu não sabia, não tinha o mesmo conhecimento quando me isolei, mas nenhum motivo, nenhuma informação me serviria de melhor desculpa para nunca, mas nunca mais voltar, mesmo que dona Úrsula morresse clamando por meu nome, pedindo minha fútil presença, que ela morresse logo para que eu nunca tivesse que voltar a ver-lhe a face enrugada.


A Primeira Fase – Miguel e Paulão

Parece surreal interromper o interlúdio de minhas recentes descobertas para recontar as cinco fases de nosso sucesso pitoresco (ou quixotesco?) às margens do córrego de Santa Maria. Mas, a pertinência quem sabe exista, já que me ocorre ao inconsciente. Afinal, Paulão, o grosso, o truculento e rústico, ajudou Miguel a armar o terreno. Conseguimos render a casa de Eusébio Ferraes sem maiores dificuldades, onde escondia-se a única máquina impressora da cidade. Fizemos panfletos que continham apenas desenhos, ilustrações, nada de letras complicadas para a mente da naçãozinha de nossa cidadela. Ilustrações insinuantes: Eram vacas pastando e, ao lado delas, Pascale e sua esposa, seus três filhos, os donos da peixaria, e mais vacas pastando em gramado verde e, ao lado delas, Kiro (Hiro, que se dizia Hhiro, e entendiam Kiro) e seu afilhado mulato, todos de quatro pastando com as vacas. Eram crucifixos nos quais dependuravam-se corpos de cidadãos e cidadãs comuns, conhecidos por todos ou desconhecidos pela maioria, sangrando, perfurados por todos os membros, torturados, definhando. Era a face de Joelmo e Jurandir e o Prefeito feitas em demônios santificados, inspirando o mesmo que os cartúns racistas e anti-semitas já inspiraram em outras épocas, em outras regiões.

Não bastava imprimir os panfletos com as diversas caricaturas, todas desenhadas por, pasmem, João dos Rosários que revelou-se artista de refinadíssimo talento. Precisávamos de alguém que os pudesse espalhar por todos os postos de Santa Maria, por todas as casas, todos os negócios, todos os sítios e fazendas – incluindo às do inimigo – e por todos os estabelecimentos oficiais: a delegacia, a prefeitura, a cadeia, localizada no mesmo edifício do tribunal... Paulão carregava os panfletos e Miguel arrombava fechaduras, quando assim fosse necessário. Em casa de pessoas simples, apenas deixavam os papéis à porteira ou empurravam pelas frestras da porta principal. Nos estabelecimentos comerciais, Paulão apenas cerceava o local e espreitava presenças indesejadas enquanto Miguel grampeava os panfletos pelas grades e cadeados. Nos consultórios do dentista, oftalmologista, psiquiatra e médico geral, arrombaram portáis elétricos, fechaduras triplas, quádruplas; desvendaram códigos secretos enquanto Paulão vigiava perifericamente, e espalharam as ilustrações sugestivas. Pelas chácaras e sítios, exploravam como podiam, usavam carne seca para enganar o olafto canino dos güardiões, e despistavam potenciais jagunços com distrações sonoras, algo facilitado pela vastidão dos terrenos. Não encontraram dificuldades na primeira noite. A cidade na manhã seguinte, contudo, amanheceu na total e mais completa polvorosa, ou como diria Gonzálo, “!un cáos!”

Jurandir viu chifres em sua cabeça que jamais acreditara poderem existir, em um desses panfletos atirados ao seu capacho. Chamou a esposa Miranda e deu-lhe dois tapas atravessados à face.

“Que merda aprontasse, mulher? Que merda é essa?”

“Qual? Qual?” Perguntava chocada, a pobre coitada.

“Chifres nos meus cornos! Não! Cornos nos meus chifres! Ah, é o caralho! Cornos, ‘taqueopariu, chifres! Deu pra quem, Miranda?” Gritava e chacoalhava a indefesa como uma boneca de pano.

“Q-q-q-q-u-u-u-u-e-e-e-chhhhh-i-i—fr-e-e-e-sssss?” Tentava responder entre chacoalhão e sacudida. Jurandir fazia apenas apontar os panfletos, e apontava os cornos. “Páaaaara!” Implorava a desmilingüida. Isso eu pessoalmente não vi, mas Carlinhos, amigo do caseiro da fazenda de Jurandir me contou que ouviu diretamente da boca de Quixão, um sem-terra perdido de sua banda que foi parar no terreno do Coronél justo naquela manhã caótica e testemunhou tudinho.

Desviando da cena, conto que todos os panfletos causaram similares confusões. Bem como o coronél demorou a entender que além de crifres tinha a pele colorada, língua de serpente e cabelos lambidos com’um conde drácula, e que aqueles não eram chifres de putaria, mas de maldade, demoraram todos a entender que ninguém os estava xingando de vacas, e que ninguém pretendia a blasfêmia quando dependurava pessoas comuns à cruz ao invés de Jesus, como fosse apenas o Grande Judeu a morrer-se em encruzilhadas. A confusão era tanta, que a princípio até me arrependi de ter deixado de fora as letras para quem sabia ler. Que fosse alguma indicação menos primitiva, menos Rorschach. No entanto, logo concluí que o efeito era mesmo desejado, e que a confusão fazia parte, a inicial e primitiva, da digestão pensamental. A mensagem estava dada, e já estavam os soldados e jagunços lado a lado procurando os infratores, mas todos sabíamos que, se quiséssemos causar o impacto necessário, tínhamos obrigação de continuar espalhando a palavra, poluindo a cidade de nossas idéias revoltadas. “Vocês são mesmo como o gado, povoado, povão, povo de Santa Maria, e eu não serei pastor, porque cansei de ver-nos pastar. É hora de se levantar. “Ye are many, they are few...”

4 comments:

Anonymous said...

Tchatchatchãm!!!...

Anonymous said...

hehehehehehe

essa história é boa pra kct

Marconi Leal said...

Boa!

Brena Braz said...

Adorei que eu to no "eixo do bem".
:)

hehehe

Beijo