Monday, April 19, 2010

Intolerância de Ambiguidades (2)

Ao fim do curso de relações internacionais e o Oriente Médio os alunos foram convidados a propor uma lei do ponto de vista dos Estados Unidos ou das Nações Unidas visando a resolução de algum dilema ou conflito regional. O mesmo ocorreu ao fim do curso sobre o Islã e seu papel na dinâmica das relações externas contemporâneas. Logo, quando as fichas caíram, apresentei um único problema e duas propostas diferentes.

Pesquisando, descobri dois fatos que me assombram sobre o Departamento de Estado dos Estados Unidos. A primeira, é que não há nenhum grupo inter-governamental ou pertencente ao departamento que lide com as questões religiosas no Oriente Médio. Segundo, que as tropas armadas estadunidenenses tem preparação mínima sobre as diferentes religiões, etnias e culturas encontradas no local. Com apenas três horas obrigatórias sobre reconhecimento do terreno ocupado, soldados e soldadas viajam ao Iraque, Afeganistão e Arábia Saudita com uma ideia caquética da situação local.

Sobre a necessidade do reconhecimento das diversas religiões locais, precisamos entender, como já compreenderam diplomatas estadunidenses desde a Guerra Fria (a exemplo de James C. Campbell, diplomata do país ao fim dos anos ’50, que já pedia que o governo apagasse sua imagem de imperialista, mesmo que precisasse perder a fama de hegemonia global), que a religião islâmica é intrinsecamente política em sua natureza e na conduta da esmagadora maioria de muçulmanos no planeta. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o início do revivalismo islâmico contemporâneo, a maioria dos estados criados tornaram-se oligárquicos e massivamente mais étnicos do que religiosos. Saddam Hussein e o regime do Baath, Hosni Mubarak e o Egito, o parlamentarismo rústico do Pakistão e até mesmo o califato da Arábia Saudita fazem parte desse grupo.

Mesmo assim, com o surgimento do terrorismo multi-nacional da al-Qaeda (a base) de Osama bin Laden, e após a bem sucedida Revolução Iraniana de 1979, a consciência popular tende a encontrar refúgio das injustiças cometidas pelas ditaduras pseudo-seculares do Oriente Médio no próprio Islã. Mais de 80% das populações muçulmanas, sejam shi’itas ou sunnitas ou kurdas, exigem um estado Islâmico baseado nas leis da religião, ou a Shariah, o que não se trata necessariamente de um modo específico de segui-las, nem mesmo que as leis de hijab (discreção e modéstia nas vestimentas) sejam as mais rigorosas. No entanto, para a maioria dos muçulmanos no Oriente Médio, um estado justo e baseado em justiça e igualdades sociais só pode ser um estado Islâmico.

O grande problema é a imagem dos Estados Unidos aos olhos de países como Irã, Egito, Síria, Líbano e Jordânia, sem contar na cada vez mais desgatada imagem no Iraque e Afeganistão. Ao mesmo tempo, a imagem decadente dos Estados Unidos reflete-se perfeitamente no tratamento do próprio país aos países mencionados, algo que em grande parte também encontra raízes na imagem do Oriente Médio construída pelos Estados Unidos. Sobre isso, James K. Glassman, em seu discurso de aceitação do cargo de sub-secretário das relações externas no Departamento de Estado em 2008, pede aos seus colegas e ao presidente que o país comece a liderar a “guerra de ideias”. De fato, é esta guerra a única que pode contribuir na reconstrução de uma imagem mútua melhor, segundo Glassman, e a enfática mudança do uso de “poder rígido” bélico ao “poder suave” da diplomacia.

Para liderar a guerra de ideias diplomatas e demais políticos estadunidenses precisam, primeiro, demonstrar que não são totalmente ignorantes sobre a realidade regional nos países que os Estados Unidos visam interferir, e nos dois que as forças armadas do mesmo invadiram. A intolerância de ambiguidades no Oriente Médio (que muitas vezes, como escrito no texto anterior, expande-se à intolerância de ambiguidades em outras regiões quando julgam, quase às cegas, que um lado é mais certo do que o outro) ganha corpo quando as faces mais representativas dos Estados Unidos, soldados e soldadas que convivem diariamente entre os variados grupos étnicos e seus valores religiosos e éticos, caminham sem noções básicas da realidade que os circunda pelas estradas do local.

Claro que o objetivo principal é a retirada das tropas do Iraque e Afeganistão o mais rápido possível. No entanto, a mera retirada das forças armadas de dois países jamais será suficiente para a al-Qaeda de bin Laden que, baseada nas palavras do lider militante, reage contra qualquer espécie de interferência estadunidense na Arábia (todos os países árabes), Iraque (especificamente, uma interferência que não terminará com a retirada das tropas) e Jerusalém (o apoio dos Estados Unidos a Israel). Enquanto todas as retiradas não ocorrem supostamente pela necessidade de reconstruir o que foi localmente destruído, as tropas precisam representar um país menos ignorante, no mínimo.

Do mesmo modo, criando uma instituição inter-governamental religiosa, na qual os 1.3 a 7 milhões de muçulmanos que vivem nos Estados Unidos encontrarão um canto para vociferar suas preocupações e perspectivas sobre o assunto, o Dep. de Estado poderia legitimar suas causas e associá-las ao Islã, algo não de todo irreal, e desde que a conduta não seja imperialista (algo que os nativos perceberão com imensa facilidade), a publicidade do Islã encontrando as portas dos Estados Unidos abertas e convivendo em plena harmonia dentro de suas fronteiras poderia ajudar a forjar uma espécie de tolerância dessa ambiguidade explícita.

De todos os modos, a lição não difere do texto passado. Sem o conhecimento da história, dos grupos étnicos, dos cultos religiosos, das raças e das identidades locais, qualquer opinião, seja ela interna ou externa, é necessariamente falida.

RF

5 comments:

Jens said...

Oi Roy.
Tenho a impressão de que o parco conhecimento dos EUA sobre a cultura e a geografia de outros povos não se restringe aos setores militares, mas é uma característica comum a todo o povo do império. Até recentemente para a maioria dos ianques Buenos Aires era a capital do Brasil e o Rio de Janeiro uma cidade onde silvícolas conviviam com macacos nas vias públicas. Creio que em relação ao Brasil esta percepção mudou, mas, como você observou, ainda subsiste em relação a muitos países do Oriente Médio. Por certo àquelas sociedades possuem traços de bárbarie - mas será apenas isto?
Este desconhecimento em relação ao resto do mundo já teve consequências trágicas para os americanos do norte, caso da derrota no Vietnã e como prova o imbróglio que criaram no Iraque e no Afeganistão. Porém, são fortes as indicações de que nada aprenderam com o passado, pois parecem determinados a se enfiar em uma nova enrascada no Irã. É impressionante a leviandade com que descartam vidas humanas - as próprias e a dos outros. Aparentemente, não há outro forma de se construir e manter um império - ainda vai jorrar muito sangue.

Um abraço.

Roy Frenkiel said...

Recentemente fiquei sabendo que uma pessoa responsavel por pesquisas multi-culturais no Brasil (Minas) nao sabia, antes da semana passada, o que eram "judeus". Vira e mexe ouvi brasileiros chamando arabes de "turcos", o que se trata de um costume corriqueiro no Brasil. Ha alguns anos, quando meu tio, psiquiatra, esteve no Congresso sobre a Cannabis em Sao Paulo, o oficial do exercito brasileiro disse que nao sabia como eram os holandeses, mas que tinha certeza de que os holandeses poderiam servir como cobaias para os brasileiros legalizarem a maconha. O oficial nao tinha certeza se a Holanda ficava na Europa.

Enfim, Jens, posso citar trezentos exemplos parecidos sobre a mesma ignorancia da parte do povo brasileiro. Esta certo que sabem onde fica Buenos Aires, a maioria, mas tambem uma grande parte nao sabe onde fica o proximo estado.

Claro esta que os EUA tem maior responsabilidade E maior envolvimento quando se trata do resto do mundo. E por isso, o pecado e muito maior. Mesmo assim, a ignorancia sobre o proximo povo, o povo vizinho, e um enorme defeito de toda a humanidade. Os EUA so sofrem mais por serem imperio. E estao longe de ser o pior imperio, e muito proximos ao melhor que ja tivemos ate hoje. Entao imagine a situacao da humanidade.

Abrax

RF

Luma Rosa said...

Cultural que algumas nações tenham e precisam da imagem do 'bandido' para que o 'mocinho' possa reafirmar que luta em prol do bem comum. Governos assim preferem manter a ignorância do povo, apenas para não perder créditos de confiança, mas uma coisa acho legal neste caminhar; o desvinculamento da imagem do terrorista como sendo uma característica inerente a determinada nação.

Roy, também não como Minojo! A brincadeira é para reunir os meninos em torno da mesa e discutir o dia a dia. O que um prato de refeição provoca em nossos sentidos! Transformar o Miojo em algo atraente, pode ser um desafio!! Em breve o desafio será "cremes e sopas" quentes ou frias e, se quiser participar, sinta-se agregado!

Bom fim de semana! Beijus,

Roy Frenkiel said...

Luma, voce diz "algumas nacoes". Esse, pra mim, e o maior erro da base intelectual brasileira (especialmente a que se manifesta na blogoesfera). Me parece assombrosamente ingenuo nao entender que todos os paises, nesse sentido, agirem e agem mais ou menos do mesmo modo. Trata-se do paradigma "realista", algo que a maioria dos liberais, neo-liberais e outros construtivistas (ate mesmo pos-realistas, ou desconstruvitistas) nunca conseguiram desprovar ou fugir. Paises agem por interesse proprio, e calculam que suas decisoes sejam as unicas certas para conquistar justamente o que e melhor para as proprias. Isso advem, segundo "realistas", de alguns problemas que encontramos na dinamica de relacoes internacionais, entre estes, o medo que temos do "outro", a desconfianca que temos de suas intencoes, o desconhecimento e as falhas na comunicacao geral. Sem absolutamente nenhuma excecao (e podemos ate puxar a Guerra dos Tres Poderes entre Brasil, Argentina e Paraguai e comprovar que o Brasil tambem fez dos seus inimigos "bandidos" quando a realidade estava longe disso) todos os paises cometem exatamente o mesmo pecado. Incrivel como tanta gente pensa que se os EUA deixarem de existir atualmente algo iria mudar nessa dinamica. Infelizmente, nao seria assim, ao menos nao penso.

Seu texto sobre a paz, por outro lado, traz o paradigma do construvismo, a questao de que podemos "construir" uma realidade diferente da realidade absorvida por "realistas". Mas isso requer algumas decadas, se nao seculos, para chegar a plano de mera utopia.

Abraxao

RF

Luma Rosa said...

Uma pena que não tenha conseguido passar o tom irônico do meu comentário. Não gosto de colocar as 'coisas' no mesmo saco. Mentalidades não mudam com leis, muito menos a paz se institui com elas e, a guerra? Por vezes bem mais interessante que a paz! (rs*) Beijus,