Wednesday, October 31, 2007

Vitimando e Cantando

O Sério

Terça feira, Dr. David Demko visitou nossa sala de aula de reportagem básica e fez uma palestra sobre sua criação: A Calculadora da Morte.

David Demko, professor de sociologia no MDC, criou um questionário de duzentas perguntas destinado a prever a expectativa de vida de qualquer indivíduo.

Antes de explicar sua invenção, Demko enfatizou a saúde socializada, assunto agora em pauta com a proximidade das eleições de 2008, nos Estados Unidos. Sem dizer-se contrário à idéia, salientou a prevenção de doenças crônicas – e comuns no cotidiano de milhões de estadunidenses – como método mais eficaz a seu combate.

“Nós temos a tendência de solucionar problemas atirando dinheiro neles,” disse Demko, “mas os problemas da educação pública não foram solucionados com o investimento financeiro.”

O exemplo serve igualmente à saúde: 75 por cento das doenças comuns nos Estados Unidos, de acordo com sua palestra, advém de estilos de vida deficientes. Tudo influencia, desde o modo que as pessoas se alimentam ao sedentarismo, à obesidade genética, aos vícios aos quais todos se sujeitam, de modo ou outro, em sociedade.

Seus dados, diz Demko, são baseados em estudos realizados desde 1974. Objeções?

Há talvez um ano atrás recomendei o documentário da vida de um jovem israelense nascido com paralisia-cereberal, cujo médico parteiro avisara à mãe que a expectativa do recém nascido era de apenas algumas semanas de vida. O documentário mostra o jovem cruzando o continente e chegando aos Estados Unidos para encarar o tal parteiro e dizer-lhe: “Ó eu aqui travêis. Cê num disse que eu taria morto? Bu!”

Detalhe: O menino, que vivia acorrentado a uma cadeira de rodas, formou-se em design gráfico, trabalhou no conceito e criação de personagens de jogos e desenhos animados, e a viagem, que pode parecer simples para uma pessoa saudável, quase o matou em diversas ocasiões.

A “calculadora da morte” pretende calcular algo que médicos têm a dificuldade de prever mesmo em situações estatisticamente infalíveis, como no caso do jovem israelense. O questionário foi criado, segundo Demko, com o intuito de causar reflexões sobre o estilo de vida de qualquer pessoa. Seguindo-o, o indivíduo pode perceber onde perde ou ganha anos.

No entanto, Demko admite que nem todos seus entrevistados famosos que deveriam estar mortos, de fato, estão. Ele atribui o fenômeno a circunstâncias de vida extraordinárias e à estatística, uma ciência inexata. Mesmo assim, segue fiel na crença de que sua calculadora funciona na maioria dos casos, estatisticamente.

A essência de sua idéia pode confundir: As pessoas são culpadas por suas doenças?

Uma de suas idéias é que o povo se vitima, como lera eu em vulgo artigo de um blogue político há alguns meses. No artigo, o anônimo escritor dizia que “a esquerda” cultiva na população a idéia de que sejam todos vítimas de suas circunstâncias.

Demko referia-se melhor à prevenção de doenças como o câncer ou enfizema pulmonar, como se as pessoas fossem literalmente culpadas por contraí-las quando fumam ou mal se alimentam.

Disse que enquanto uma pessoa se julga coitada, comporta-se como coitada e espera ser acolhida. O acolhimento não pode, segundo ele, apenas vir de um seguro de saúde socializado. A idéia do artigo era a mesma: Se você julga que o povo é coitado, começa a pensar que precisa ser acolhido pelo Estado.

O Escrachado

Concordo em grande parte com a teoria da auto-vitimação. Minhas circunstâncias sempre foram adversas, mas sei que se eu parar de lutar julgando-me coitado, estou em maus lençóis.

Ainda assim sou branco, judeu nos Estados Unidos e inteligente, sem modéstia alguma. Portas se abrem a brancos, judeus nos Estados Unidos e pessoas inteligentes, acreditem. Mesmo que ninguém me dê nada de graça, não sou João Madruga, nascido na favela, que já nasce marginal nos lábios dessa tropa de elite brasileira, ou John Washington, nascido no ghetto do Harlem, marginal nos lábios de ex-prefeitos e candidatos à minha presidência.

Todos devem saber que a Califórnia quase vai-se em chamas como Roma foi-se certa vez.

Nessas, a socialite Lilly Wallace vivia – de vez em quando – em um castelo no topo de um dos montes da cidade de Malibu, que ardeu nos fogos florestais, até hoje ameaçando consumir o estado. Wallace esteve no programa de Larry King da CNN. A entrevista tratava de sua volta ao sítio do castelo, descrevendo passo a passo o que havia ali antes do inferno corroer a grandiosa estrutura.

“Aqui ficavam os lustres vitorianos, ali ficavam os lustres greco-romanos e ali ficavam as estantes barrocas e minha pintura original de Da Vinci. Ali ficava a biblioteca presidencial, e aqui ficavam as cinzas de meu finado marido em um jarro de ouro e diamante. Ali era minha modesta sala de três quilômetros quadrados, e ali ficava o estábulo de meus pôneis geneticamente mutantes voadores.”

Quando Larry King perguntou como ela se sentia, sua resposta foi: “Bem, muito bem. Meus pais me ensinaram que nossos bens não podem nos ter, nós somos quem temos nossos bens.” Claro! Muito bem para quem tinha apenas um décimo de suas posses no castelo-de-práia.

Pergunte, Larry King, à mocinha “morena” que perdeu a casa que terminaria de pagar em trezentos anos, se por sorte não fosse antes despejada, e as únicas roupas que seu dinheiro pôde – e já não mais pode – comprar, e os únicos livros que seus filhos puderam ler, e as únicas lâmpadas que tinha visto, em sua vida, acender; por que o senhor, Larry King, não faz essa mesma pergunta à mocinha “morena”? Mas fizeram outros... Muitas vezes, para entreter a população, que adora, mas adora, adora ver o outro na pior para lembrar-se da própria fortuna. Lilly Wallace não foi entretenimento. Foi sabedoria pura. Uma aula de esperança.

Em uma das primeiras conversas que tive com meu tio e mentor Dr. Frenkiel, enquanto eu ainda vivia religioso, falamos sobre meus ídolos do então passado.

Tinha lhe dito que o Rei Salomão era sábio e todo-poderoso, como nos contaram na Yeshivá. Meu tio perguntou: “Sábio como, por exemplo?” Respondi a ele: “Por exemplo, seu livro Kohelet, Eclesiastes, começa com as palavras: 'Hevel havalim, amar Kohelet, hevel havalim, hakol havel.’ Ou: ‘Vão dos vãos, disse Eclesiastes, vão dos vãos, tudo é em vão.’” Meu tio desafiou: “E que mais?” Respondi: “Disse que tudo era vão, que o dinheiro não valia nada.” Ao que meu tio interrompeu: “Quanto dinheiro ele tinha?” E eu: “Muito, tio, ele era o rei mais poderoso da história do judaísmo.” “Ah,” disse meu tio, “e o que mais disse ele?” Contei: “Disse que a libido era um poço de esterco.” Meu tio: “Com quantas mulheres o rei Salomão trepou?” Eu: “Muitas, tio, ele teve mais de mil concubinas.” “Ah,” disse ele, “se bem entendo, um magnata podre de rico e com o pinto caindo de tanto trepar disse que o dinheiro e o sexo não valem nada?” Juro, mas juro, que cocei a cabeça e, penso, ali se plantava a semente do ateísmo.

Finale

Demko, como talvez metade, talvez mais da metade dos estadunidenses, opina contra a auto-vitimação. Contudo, são exemplos personagens como Wallace, que jamais se auto-vitimam. Quando alguém com cacife de celebridade torra dinheiro e comete atrocidades, seus atos tornam-se a novela da semana, da quinzena ou do mês, para o bem ou para o mal. No caso do ex-jogador de futebol americano O.J. Simpson, o entretenimento fútil com sua vida dura mais de década. Sempre há quem defenda Britney Spears ou Paris Hilton, até mesmo Michael Jackson. Resumindo:

Não são eles que precisam de nossa preocupação.

Negar serviços humanitários essenciais em prol do corporativismo estadunidense me parece uma solução fácil, covarde e preguiçosa. Todos os argumentos têm lógica, mas isso é sofismo, e não nos interessa. Colocar o seguro de saúde nas mãos do Estado não significa colocar nossa saúde nas mãos do Estado.

É, sim, demandar ao Estado que faça com o nosso dinheiro o que nós queremos e precisamos. O Estado, aliás, é como o bicho-papão: Não existe. Existimos nós, cidadãos, e quando exigimos um seguro de saúde universal, educação pública e eficiente, sistema de transporte público eficaz e tantas outras de nossas necessidades, queremos que elas sejam acatadas seriamente.

Se estadunidenses, cidadãos e cidadãs dos Estados Unidos em geral, até mesmo residentes e outros imigrantes não conquistarem o direito à saúde pública, sempre terão a saúde pública doentia.

É importante estressar a importância da prevenção, mesmo porque as companhias de seguro e remédios lucram com uma população enferma. No entanto, é covardia culpar as pessoas por suas próprias doenças.

O cigarro, por exemplo, é um produto legal, taxado e o maior assassino de pessoas ao ano. A economia, depois de oito anos com a presidência de Bush, tende ao mesmo que tendem a maioria das economias mundiais: Privilegiar ricos e empurrar a classe média para a linha da pobreza. O equilíbrio que procuramos é traiçoeiro e nem todos somos perfeitos, nem todos somos iguais.

Quando caímos, gostaríamos de contar com o dinheiro que nascemos e morremos pagando em impostos. Ao invés de exigirem um melhor investimento, todavia, as pessoas exigem cortes tributários. Querem a extinção dos impostos governamentais. Querem que o Estado, esse ser inexistente, use o nosso dinheiro como bem entender, mas que não se meta em nossas vidas!

Há mais de um tipo de ditadura no planeta.

Conclusão? “Coitado é filho de rato que nasce pelado no meio do mato,” diria papai. “O resto,” agreguei, “é ser humano.”

RF

2 comments:

AB said...

“Demko referia-se melhor à prevenção de doenças como o câncer ou enfizema pulmonar, como se as pessoas fossem literalmente culpadas por contraí-las quando fumam ou mal se alimentam.”

Mas as pessoas que fumam ou se alimentam de maneira incorreta, com toda informação recorrente, não são culpadas por contrair essas doenças? Não sei se entendi, então...

Sábio, Salomão?
Sábio Dr. Frenkiel, Roy..

Esqueceu de complementar: com carrapato... Coitados dos ratinhos..

Excelente. Você está se superando, Roy!

Jens said...

Tio Frenkiel é o cara: ripou na chulipa e pimbou na gorduchinha. Pra quem tem tudo é fácil desdenhar os bens materiais.
PS: estás escrevendo cada melhor. A Confraria dos Bons Escribas agradece.