Wednesday, September 19, 2007

Tsotsi

Em 2004, morando em Higienópolis, São Paulo, comia sempre o bauru fresquinho digerido com uma cerveja gelada no bar do Mané. Certa vez, um senhor com pinta de alemão parecia completamente perdido meio a perguntas e respostas redundantes em um idioma que nada dava a entender. As perguntas eram dirigidas por um taxista, e as respostas sem nexo vinham do tal senhor. Em Inglês, descobri que era sulafricano, apesar de seu porre evidente. Nas primeiras palavras, mal entendia o que ele dizia mordendo os dentes em sotaque pesado, mas logo fui me acostumando, e entendi que ele viajaria no dia seguinte, e precisava combinar a hora certa com o taxista. Auxiliei na tarefa impossível, e fui recompensado com uma garrafa de cerveja. No dia seguinte, voltei ao mesmo lugar e lá estava ele, para minha surpresa nada viajado, sentado, bebendo sozinho, já embriagado como na noite anterior. Disse que seu "chefe" ordenou que permanecesse em SP. Ao me ver, convidou-me a mais um chope, e assim começamos a conversar diariamente. Pela profissão que ele inventou e sua ginga particular, concluí sem certeza que ele era algum tipo de gangster, mafioso, algo do gênero. Certeza mesmo, tenho somente do que ele me contava, e eram contos interessantes. Johannesburg, explicava, era uma cidade dominada pelos negros criminosos, na qual a violência corria solta e selvagem pelas ruas da capital. Perguntei a ele se não sentia o mesmo no Brasil, se sentia-se seguro. Respondeu-me que sim, porque no Brasil caminhava despreocupado pelas ruas da cidade às horas mais tenebrosas da madrugada, e nada lhe acontecia. Comentei que teve sorte. A frase que segue me foi inesquecível, e ei de lembrá-la para o resto de minha vida:

“No Brasil você tem dias de sorte. Na África, nunca.”

Seguiu dizendo que lá, criminosos sempre levavam a vantagem. Roubavam e saíam impúnes. Os subúrbios e as favelas africanas se misturavam, mas a polícia era inútil nos guetos pelo caos e falta de controle das idenditades de milhões. Pós Apartheid, Johannesburg cresceu para o mundo, ou era isso que um conhecido sulafricano me convenceu, que era uma cidade linda, mágica, rica e poderosa. Não sabia, porém, que ele falava de um antepassado próximo do Brasil. Ou melhor, de um antepassado presente em toda a humanidade.

“Tsotsi” (Gavin Hood, 2005) conta a história de um menino órfão vivendo uma vida comum nas favelas e guetos sulafricanos. Seu “trabalho” consistia em roubar e levar vantagem ocasionalmente no jogo de dados. Em um dos “serviços,” depois de disparar contra uma mulher que implorava freneticamente por “algo” esquecido em seu carro enquanto Tsotsi (marginal) o levava, roubou um ítem que não fazia parte de seus planos: Uma criança recém-nascida. Apenas percebeu quando afastado dos bairros "nobres" e da mansão escolhida para a prática do furto desesperado. Abandonou o veículo, mas não a criança.

O filme segue uma marcha particular, algo raro de se testemunhar mesmo entre os melhores diretores. Raramente, a violência, o crime e a miséria africana não assustam tanto quanto a humanidade nos impressiona nessa incrível narrativa. Cada cena, cada frase, cada gesto do brilhante (brilhante) ator Presley Chweneyagae e cada um de seus interlocutores exemplificavam movimentos muito nossos, humanos, pessoais, de modo a não sentir-me chocado – como de costume – com a desesperança de uma civilização em decadência, mas admirado de sua capacidade fantástica de abrigar as mais diversas interações.

Por motivos que apenas David (Tsotsi) nos poderia explicar, o assustado jovem levou consigo a criança para criar. Chegou a forçar, também armado, uma vizinha a amamentar o bebê, zelando por sua vida e saúde. Com a criança, David passa a arrepender-se de suas más ações, da violência, da dor causada a gente estranha. Suas vítimas são geralmente tão pobres quanto ele, a maioria honesta, trabalhadora e digna. “Decência,” diz seu amigo Teacher Boy, é a chave para o mínimo de respeito próprio, necessário para diferenciar-nos de qualquer “cachorro.” Decência que suas vitimas tinham, mas Tsotsi não conseguia enxergar.

Tratava o mundo como fora tratado quando criança, com uma mãe moribunda e um pai alcóolatra. Fugindo de casa, cresceu entre andaimes de concreto e a terra vermelha da Mãe África. Raivoso e amedrontado, aprendeu a odiar. No entanto, talvez o bebê indefeso lhe trouxe um novo senso de dignidade, de decência e responsabilidade. Com ele, percebe suas próprias raízes, e passa a refletir sobre seus caminhos. O conflito é intenso, mas fascinante a espectadores que, como eu, não conseguiram desgrudar os olhos da tela.

Quando o sulafricano de Higienópolis falava mal de negros, eu ouvia e questionava pacientemente, subornado pela cerveja. Em seguida disse que odiava judeus, e passei a tomar com maior entusiasmo. Depois de alguns dias de cerveja por sua conta, contei que era judeu.

Sua surpresa foi enorme, mas a reação foi surpreendente para mim. Sabia que pertencia à época do Apartheid, e que seu ódio a um governo majoritariamente negro partia de tempos em que negros não eram considerados seres humanos. Sabia que seu ódio ao judeu tinha ligação explícita com a mentalidade ariana que levou Hitler a destruir boa parte da Europa. Mesmo assim, quando descobriu que eu era judeu, o sulafricano me convidou a mais uma cerveja. E mais uma, e no dia seguinte ainda outra, a ponto de que eu o evitava, porque nem sempre queria me embriagar, o que não se podia dizer dele, claramente.

A humanidade é como o rabo de uma lagartixa: Sempre se regenera.

Talvez não possamos culpar os mais ricos pela miséria dos mais pobres, ou inocentar criminosos por origens miseráveis. Não podemos odiar racistas, quiçá, ou inocentar-nos de preconceitos mais variados. Enquanto sãos, todos têm responsabilidade pelos seus atos. Não creio que Hood criou “Tsotsi” com a intenção de justificar. Provavelmente, o intuito foi apenas ilustrar interações regeneráveis, e nossa capacidade de aproveitar o mais sutil prazer de um pôr-do-sol, mesmo debilitados de nossas pernas ou braços. Odiamos, muitas vezes, porque não nos permitimos a maturidade de amar. Amamos, porque não conseguimos odiar. O que há de errado conosco? Assistindo “Tsotsi,” garanto, terão vários exemplos do que há de certo.

RF

3 comments:

Jens said...

Perdão, mas não posso evitar: P U T A Q U E P A R I U !
Muy bueno. Sem dourar a pílula, desvenda um véu de esperança. Vou na locadora já!

Jens said...

Esse desvenda um véu ficou meio estranho. Mas deu pra entender, né?

Anonymous said...

Puxa vida, que belo texto, senhor jornalista!
Me levou às lágrimas!
Abraço forte
Camila

P.S. Adorei, especialmente, a narrativa do cotidiano em Higienópolis... muito interessante ler São Paulo por você!