Wednesday, May 02, 2007

Sociedade Tirana e Mentecaptos

A sociedade julga seus mentecaptos... Nas duas últimas semanas li dois livros importantes em minha vida, “O Mentecapto” de Fernando Sabino e “On Liberty” de John S. Mill. A narrativa de Sabino fala sobre um personagem que perlustra por Minas Gerais e sempre protagoniza nos maiores eventos das respectivas cidades do Estado, fatalmente julgado um “mentecapto” por seu modo diferente, único e original de ver a vida. Já Mill, em seu parênteses, como o próprio autor classifica seu pequeno livro, fala sobre o princíprio da liberdade em alguns aspectos essenciais para a sociedade. Um desses aspectos é a liberdade essencial que o indivíduo merece tanto de interferências governamentais quanto de interferências por parte da maioria, em tudo o que lhe diz respeito privado. O único ato que alguém pode cometer qualificado para o concedimento de qualquer interferência é o ato de prejudicar outrém.

Bem como o personagem de Sabino, há pessoas em nossa sociedade que sofrem por serem mentecaptos, e não falo apenas das pessoas ilustradas por Venâncio em sua Tirinha, no R.C. (clique aqui para vê-la). Os desqualificados, ou anormais, os bandidos assim apontados e acometidos pelas massas tendem a justamente se encontrar entre as pessoas mencionadas por Mill em seu discurso, pelas quais pediu mais liberdade do que nosso sistema arcaico garante.

Hoje calhei de assistir a um trecho do programa de Ana Maria Braga enquanto me recupero de uma chatíssima crise de hernia (e é inguinal, para quem perguntou). Os convidados, um casal e seus três filhos, contavam suas experiências no seqüestro de 52 horas da mulher e suas crianças enquanto o marido trabalhava. Ana Maria conduziu a entrevista suavemente, sonada, para ser mais franco, até um pouco grogue, e a entrevistada, que contou o caso, manteve-se igualmente tranqüila a relembrar difíceis memórias. Confesso não ter nenhum conhecimento do ocorrido, nem saber se o programa é repetido do ano passado. No momento, apenas posso escrever sobre o que ouvi. O meliante, conforme as imagens, tinha contra si uma ficha criminal quilométrica, mas naquele instante – o único que nos importa – procurava apenas fuga da polícia, sua veterana companheira. Não pensava fazer reféns, mas como eu calhei de assistir a Ana Maria Braga, ele calhou de precisar fazê-los se quisesse lograr o objetivo.

A entrevistada explica que “Ivanildo” (o único nome que me ocorre no momento, um alias) não desejava machucar suas crianças, nem a ela. Queria apenas fugir, mas com o cerco fechado, viu-se obrigado a negociar com o que tinha na mão. Ana Maria perguntou das reações, tanto da esposa quanto do marido, que viveu a situação do lado de fora da casa. Obteve respostas da esposa e do marido. Depois, a apresentadora questionou o casal sobre o sequestrador, e a entrevistada contou, novamente, que o sequestrador jamais demonstrou o intuito de machucar alguém. Está certo que existe a síndrome de Estocolmo, na qual a vítima se aproxima e acaba até dependendo emocionalmente da pessoa que a domina abusivamente. Mesmo assim, há casos em que as vítimas são abusadas fisica, sexual e emocionalmente, como no caso do assaltante de uma farmácia no norte do país, ontem ou antes de ontem, em que o criminoso encontrou-se na mesma situação que “Ivanildo,” e enquanto negociava, assassinou a sangue frio uma criança de 11 anos, outra de 17 e mais um dos clientes antes de refugiar-se em uma ambulância (porque não queria trafegar em camburão). “Ivanildo” não tinha mesmo, conforme as imagens de seu semblante quando capturado, conforme os relatos das vítimas e a falta de aparente trauma na conduta das crianças, a intenção de machucar ninguém.

Quis falar com sua mãe... Falou e se acalmou por ela. Ligava o gás da cozinha, pelo que entendi para asfixiar-se, mas depois pensava nas crianças e pedia para que fosse desligado. Quis proteger sua mãe de sua grotesca imagem, mas quando percebeu que os noticiários televisivos divulgavam seu nome verdadeiro, deu um tiro pela janela e chamou a atenção da Cana. As autoridades invadiram a casa e levaram o homem semi-nu ao cativeiro invertido. Detalhe, “Ivanildo” havia libertado uma criança em troca de um colete a prova de balas.

Quando Ana Maria perguntou o que a entrevistada pensava justo que ocorresse a “Ivanildo” por seus crimes, esta não soube o que responder. Não queria, evidentemente, que ele fosse punido exacerbadamente. Inclusive, teve a sagacidade de dizer que não seria ela sua juíza, mas sim, a sociedade, ou seja, o judiciário que, supostamente, representa a sociedade. Mas, no próprio questionamento, Ana Maria comprovou que, de um modo ou de outro, o judiciário carrasco (dependendo com quem) representa a vontade do público. A apresentadora pontuou à entrevistada que “Ivanildo” era um bandido, com uma ficha criminal quilométrica, ao que a própria se assustou e disse: “Se eu soubesse isso antes, não teria ficado tão calma...” Mesmo assim, não queria que “Ivanildo” fosse punido excessivamente, porque desenvolvou-se algum carisma, porque “Ivanildo” dizia que não tivera oportunidades, que fora desqualificado pela sociedade, que era classificado, desde criança, como um Pixote.

Os mentecaptos da sociedade são assim julgados. Quem sabe quais crimes compõem aquela ficha criminal, quantos são verdadeiros, quantos são exagerados, quantos furtos e quantas vítimas físicas? Não sei, talvez meus leitores, mais acostumados aos noticiários brasileiros, saibam melhor do que eu. O fato é que “Ivanildo” e muitos outros são assim desqualificados, não pelo governo, esqueçam desse órgão fictício, mas pela sociedade, e não pela sociedade de telespectadores invisíveis, mas pelos vizinhos de “Ivanildo,” por seus colegas, pela polícia que sempre cerceia as regiões mais pobres, porque além de advirem das mesmas, todos sabem (mesmo inconscientemente) que a polícia serve para proteger os que têm dos que não têm. E não faço aqui um disrcuso socialista barato, pelos quais muitos são criticados por sentir pena das pessoas e tratá-las como vítimas. Não é isso... Apenas bato na mesma tecla e me pergunto que tipo de castigo seria justo a “Ivanildo,” que fosse justo se aplicado sozinho, sem nenhum castigo aplicado a todas as pessoas que contribuíram com sua transformação em um meliante, além do castigo merecidamente aplicável a todas as pessoas que podiam oferecer-lhe uma vida diferente e não ofereceram, e a todas as pessoas que pensaram em prendê-lo, o que obviamente não funcionou em seu caso, ao invés de educa-lo, e a todas as pessoas que até então, ajudaram com centavos e vinténs, pouco a pouco, a “Ivanildo” chegar àquela casa e sequestrar aquela família?

Ou seja, não trato pessoas como vítimas, mas sim a todas como meliantes, pois a apatia, o preconceito e a repressão sem educação ou infra-estrutura social são os maiores crimes de nossos tempos.

Podemos continuar pensando na “causa-consequência,” “ato e retribuição,” “dor e recompensa.” Mas, pensem bem, o fato de que não esteja funcionando a séculos não quer dizer que, talvez, precisemos mudar? Se me perguntarem como, meu conselho inicial é ao indivíduo: Pense duas vezes antes de julgar seus mentecaptos, e mesmo julgando-os, pense duas vezes antes de puni-los, e mesmo se precisar puni-los, simplesmente, pense nos mentecaptos. Talvez assim eles comecem a pensar em você. Não faça parte da tirania de uma sociedade abstrata. Pense.

RF

5 comments:

Santa said...

Meu querido, a boa leitura é aquela que nos faz pensar!
Bjs

Moita said...

Temos que pensar em nós, mentecaptos. Não tenho certeza se não sou mentecapto também. Parei. Detesto filosofar.(rss)

1 Abraço, Amigo.

Daniel Pearl Bezerra said...

Sou Daniel Pearl, jornalista-editor do blog DESABAFO PAÍS(BRASIL), jornalismo independente e de esquerda, com mais de 173 mil acessos. Gostaria de trocar nossos lonks. Meu endereço: http://desabafopais.blogspot.com
E-mail para confirmação: desabafobrasil@oi.com.br

Anonymous said...

"Os Ivanildos" são homens invisíveis. Estão nas ruas, precisando e pedindo a oportunidade construir uma vida decente e tranquila, mas a sociedade finge que não vê. Só são percebidos quando descabam para a marginalidade. Nessas ocasiões,os "homens de bem" clamam pelo encarceramento precoce e a pena de morte. Nenhuma das duas coisas vai minorar a criminalidade. Para que isto aconteça é necessário fazer um novo país, onde o bem-estar dos seus habitantes seja o principal objetivo dos agentes sociais. Difícil, né?
Enquanto isso não ocorre, continuam valendo os conselhos de mestre Millôr: a primeira preocupação do algemado é não pensar em comichão. E a obrigação maior de prisioneiro é tentar a fuga. A isso chamamos de civilização. Eu, hein Rosa? Área muito perigosa.
Um abraço.

tanis britto|FOTOGRAFIA said...

Não tinha um texto maior?????
Tô com uma fadiga.... pq não entra de sábado hein?
Beijocas